Programa desenvolvido para atender famílias do
Pantanal de MS foi premiado mundialmente e já está sendo replicado na Amazônia
Legal.
“Quando uma estrela cai no escurão da noite...”, diz a introdução
de “O Violeiro
Toca”, um clássico brasileiro e um dos maiores sucessos de
Almir Sater e Renato Teixeira. E justamente uma condição retratada neste trecho
da música, em uma das paisagens mais belas e preservadas do mundo, onde um dos
seus autores vive e se inspira para compor a sabedoria e os desenganos da
natureza, está mudando graças ao um projeto que alia novas tecnologias,
preservação do meio ambiente e inclusão social.
A
energia elétrica, de fonte renovável, o sol, está chegando as áreas mais
distantes e isoladas do Pantanal, em Mato Grosso do Sul. O “escurão da noite”,
cantado pelo pantaneiro Almir Sater, já deixou de ser realidade para 2.091
famílias de ribeirinhos, trabalhadores rurais, produtores e indígenas, além de
escolas e comunidades, que foram atendidas em Corumbá e Porto Murtinho, pela
primeira fase do programa Ilumina Pantanal, entre 2021 e 2022.
Para
a segunda fase do programa, que começa oficialmente na próxima segunda-feira,
dia 25 de julho, a concessionária responsável pelo fornecimento de eletricidade
para a maior parte de Mato Grosso do Sul, a Energisa, prevê atender mais 836
famílias, sendo 700 até setembro.
O
gerente do Ilumina Pantanal, Héber Selvo, diz que as soluções tradicionais de
eletrificação, com redes de distribuição, fiação exposta, postes e subestações
não teriam viabilidade econômica, técnica e ambiental para essas áreas quase
isoladas no Pantanal e que, por isso, foi pensando em um novo sistema para
atender a região.
“Toda esta diversidade de
biomas, fauna e flora são sensíveis as soluções tradicionais de eletrificação,
como as redes de distribuição com a fiação exposta, que pela característica do
Pantanal podem afetar aves de médio e grande porte. Para a instalação dos
postes destas redes é necessário a abertura de faixas de passagem, estradas
para transporte e infraestrutura pesada de construção. Além do mais, seria
necessário a construção de duas subestações de porte para distribuir energia na
região. A configuração de uma subestação é muito sensível ao regime de
alagamentos da região e a sua construção exige o transporte de equipamentos
pesados por uma região que não possui infraestrutura viária para tal”, explica.
Por
conta dessas dificuldades, Selvo, diz que a empresa iniciou em 2015 um projeto
de pesquisa e desenvolvimento fomentado pela Agência Nacional de Energia
Elétrica (Aneel). O objetivo, desenvolver uma solução inovadora para levar
energia as áreas isoladas do Pantanal.
“Foi realizado um levantamento
inicial via imagens de satélite, buscando identificar, pelo tratamento das
imagens digitais, a localização das potenciais unidades consumidoras.
Posteriormente foi realizado o levantamento de campo a cada unidade a fim de
verificar efetivamente o número de famílias e residências daquele local. Este
levantamento indicou um total de 77 unidades que poderiam ainda ser atendidas
com a extensão do sistema convencional de distribuição, e mais 2090 unidades
que estavam distantes das redes, inviabilizando seu atendimento pela solução
convencional”, recorda.
A pesquisa identificou
aproximadamente 3,4 mil moradores que vivem nas regiões mais isoladas do
Pantanal, sendo que 45% desse total, são ribeirinhos.
O gerente do Ilumina Pantanal
explica que neste mesmo projeto foram desenvolvidos estudos de viabilidade para
o uso na região de diversas fontes de energia renováveis e intermitentes, como:
eólica, biomassa, hidráulica e também a solar. “A fonte de energia solar
fotovoltaica se mostrou a mais viável do ponto de vista técnico, por não
possuir partes girantes (turbinas, eixos, mancais) e exigir menor manutenção,
bem como do ponto de vista econômico pois a tecnologia é mais adequada a centrais
de pequeno porte”.
Ele diz que definida a fonte
solar voltaica, como melhor alternativa técnico-econômica, os estudos se
voltaram para identificar a tecnologia de armazenamento mais adequada para a
região. “Dada a natureza intermitente da fonte solar é necessário armazenar sua
produção para utilização nos momentos em que a fonte não está disponível,
quando não tem sol. Para isso iniciamos a fase dois do projeto, voltado a
definir a melhor tecnologia de armazenamento para aplicação neste case”.
A melhor alternativa, conforme
ele era a utilização de baterias com a tecnologia de Lítio ferro fosfato
(LiFePO4), a mesma dos veículos elétricos, que seria capaz de atender as
necessidades de consumo de uma unidade consumidora por até dois dias sem sol.
As pesquisas duraram cinco
anos,envolvendo a CSA, Calden e Lactec, e R$ 10 milhões de investimento. Os
estudos levaram até o desenvolvimento do Sistema Individual de Geração com
Fonte de Energia Intermitente (Sigfi).
A iniciativa foi criada,
conforme ele, levando em conta a preservação do meio ambiente - desenvolvendo
uma tecnologia que não agredisse o bioma; e a questão logística - com a
utilização de materiais que tivessem um volume e um peso menor, possibilitando
reduzir os custos com transporte e com manutenção.
“O sistema é um conjunto de 4
módulos fotovoltaicos de 345 Wp (watt-pico) cada, que totalizam uma potência
instalada de 1.380 Wp. A energia gerada pelos módulos é convertida para carga
do banco de baterias por um controlador carga de 2.500W Studer, que faz a
conexão com um banco de baterias com dois módulos de 48V/50Ah. Este banco de
baterias, de tecnologia Lítio ferro fosfato totaliza uma capacidade de
armazenamento de 4.800 Wh”, detalha.
Selvo explica que a energia
gerada e armazenada em corrente contínua é convertida para “corrente alternada
por meio de um Inversor de frequência de 2.000 W onda senoidal pura”, para ser
entregue então na residência do cliente. O sistema, de acordo com ele, tem
capacidade para atender uma casa com geladeira, televisão, rádio, três pontos
de luz e um tanquinho de lavar roupas. “Por ser uma solução leve e compacta a
interferência no bioma é a mínima possível”.
O sistema, de acordo com o
gerente do Ilumina Pantanal, utiliza componentes de várias parte do mundo. Os
módulos fotovoltaicos (placas solares) são da China. O controlador de carga é
da Suíça. O inversor de frequência também é chinês. O banco de bateria é
brasileiro, assim como a estrutura de sustentação, também, toda em alumínio.
Além da interferência no bioma
ser mínima, Héber Selvo relata que outra vantagem do sistema é ter um menor
volume e ser mais leve. “O banco de baterias de Ion Lítio ferroso tem um sexto
do tamanho e um terço do peso em comparação com um banco de Chumbo ácido –
PbSO4, da mesma capacidade.”
Somente na primeira fase do
programa, as equipes da concessionária transportaram mais de 936 toneladas de
equipamentos entre módulos fotovoltaicos, baterias de lítio e eletrônica de
potência em uma região de 92 mil quilômetros quadrados sem estradas formais e
que passa 80% do ano alagada.
Custo
O
custo de cada kit é de aproximadamente R$ 71 mil e 60% é custeado pelo Programa
Luz para Todos, do Ministério das Minas e Energia. Além da Energisa, são
parceiros do projeto o governo de Mato Grosso do Sul, a Agência Nacional de
Energia Elétrica (Aneel), Eletrobrás e o Ministério das Minas e Energia. Veja acima
números do programa:
Ao todo, a Energisa e o governo
federal estão investindo R$ 134 milhões no projeto. O investimento é 80,86%
menor do que se a eletrificação fosse feita com o sistema convencional, que
demandaria para a universalização do acesso a energia elétrica na região
custaria em torno dos R$ 700 milhões.
O projeto piloto foi iniciado
em 2018 com 23 instalações nas mais variadas regiões do Pantanal, atendendo a
22 famílias e uma escola. Na segunda fase, serão instalados mais 836 unidades
nas regiões do Pantanal de Paiaguás, Nabileque e Nhecolândia.
Outra
vida
Entre os
pantaneiros que receberam o benefício está o produtor rural Waldemar Magalhães,
de 79 anos. Ele é filho de desbravadores da região da Serra do Amolar – uma das
áreas mais isoladas do bioma em Mato Grosso do Sul. A região fica a cerca de
100 quilômetros de Corumbá e o acesso é feito somente por barco ou avião.
O g1 esteve
na região em julho de 2021, quatro meses antes das equipes do programa
instalarem o kit na casa de Waldemar. Em meio as histórias sobre as
dificuldades da vida na região para cultivar uma pequena lavoura de subsistência
e manter algumas cabeças de gado leiteiro, ele revelou a ansiedade e a
expectativa pela chegada da energia.
O
panteiro disse que tinha em casa uma gelaeira, mas que ela funcionava a gás e
que, por isso, não ficava o tempo todo ligada. O eletrodoméstico, assim como o
gerador, movido a gás, só funcionava em ocasiões especiais, quando o produtor
recebia alguma visita ou algum parente.
"Aqui não é fácil. Tem
essa geladeira velha, a gás, que só esfria e male mal. E o gerador sai muito
caro. Você não aguenta pagar o preço do diesel. Ligo ele somente quando
precisamos. Se tenho que sair uso uma lanterna", dizia na época.
Com a eletricidade, a vida de
Waldemar mudou e os tempos de “perrengue” ficaram no passado.
Outra
beneficiada, também da região da Serra do Amolar é a ribeirinha Enaurina da
Silva Rodrigues, de 60 anos. Catadora de iscas, para a venda aos turistas, ela
mora em uma casa improvisada, feita de lona e madeira, nas margens do rio
Paraguai.
Com a eletricidade, além de uma
geladeira doada por um programa social da concessionária, ela ganhou também
mais segurança para criar as netas. "Tudo era muito difícil. Tínhamos que
fazer lamparina de óleo diesel para clarear”, recorda, comentando que a
claridade da lampada ajuda a manter visitas indesejadas, como as onças,
afastadas de sua casa.
Preservação
ambiental
A preocupação com a
preservação ambiental sempre foi um dos pilares do programa em razão da
importância do bioma em que a iniciativa foi desenvolvida. O Pantanal é uma das
maiores áreas úmidas contínuas do planeta. Dos seus 138 mil quilômetros
quadrados de área, 65% estão em território sul-mato-grossense. Pela importância
para o meio ambiente é considerado Patrimônio Natural da Humanidade e Reserva
da Biosfera pela Unesco. Já foram identificadas no bioma 3,5 mil espécies de
plantas, 325 peixes, 53 anfíbios, 98 répteis, 656 aves e 159 mamíferos.
Em
razão das características hidrogeomorfológicas, das vegetações e dos períodos
de alagamento, o Pantanal apresenta 11 subdivisões, sendo oito em Mato Grosso
do Sul: Paiaguás, Nhecolândia, Paraguai, Nabileque, Porto Murtinho, Abobral,
Miranda e Aquidauana. Em algumas delas, o acesso ocorre somente pelos rios da
região – principalmente o Paraguai, ou por via área – avião ou helicóptero.
De
MS para o mundo
A
tecnologia criada para atender as famílias isoladas do Pantanal
sul-mato-grossense e o know-how aquirido pela concessionária neste processo
estão sendo utilizados para levar energia elétrica gerada de forma sustentável
para a Amazônia Legal.
Por meio de convênio assinado
com Ministério das Minas e Energia, a Energisa está levando o sistema para
regiões remotas do Acre (1.368 ligações previstas para 2022), Rondônia (900
ligações), Tocantins (586) e Mato Grosso (410).
Assim como está ocorrendo em
Mato Grosso do Sul, a chegada da eletricidade está contribuindo para melhorar a
qualidade de vida e reduzir a vulnerabilidade social e econômica das
comunidades beneficiadas, em sua maioria ribeirinhas e indígenas.
Em Rondônia, por exemplo, a
empresa investe R$ 34 milhões. O trabalho começou em maio e já beneficiou 100
famílias ribeirinhas do Baixo Madeira, em Porto Velho. As localidades de Terra
Firme, Ilha Nova, Firmeza, Ilha Assunção e Ressaca estão à cerca de 150 km de
barco do centro da capital do estado.
A iniciativa já mudou a vida de
pessoas como a do agricultor Joelson dos Santos Vieira, da pequena comunidade
de Terra Firme. Ele conta que há 30 anos mora na localidade e que não conseguia
fazer nada durante a noite devido à escuridão. Lembrou que precisava usar
lanterna para andar dentro da própria casa à noite. “Eu não podia comprar as
coisas no mercado para guardar aqui, porque não tinha energia para usar uma
geladeira. A gente salgava a carne e o peixe para não estragar”.
O Ilumina Pantanal, entretanto,
não vem servindo apenas de referência para projetos similares em outros estados
do país. Sua dimensão e importância ganhou no ano passado um reconhecimento
mundial.
A iniciativa foi a grande
vencedora da premiação internacional Solar & Storage Live Awards 2021 sobre
inovação e geração solar, que aconteceu em Birmingham, na Inglaterra.
O prêmio é concedido pela Solar
Energy UK, uma organização britânica sem fins lucrativos que representa toda a
cadeia de valor do armazenamento solar e de energia, liderada por membros de
mais de 230 empresas e associados.
O gerente de planejamento da
Energisa Mato Grosso do Sul, Antonio Matos, participou da cerimônia
representando a empresa. “Essa premiação reforça que acertamos. Vemos o
resultado de um trabalho que além de inovar, vem transformando a realidade de
muitas famílias. Fico muito feliz de receber na Inglaterra em nome do Grupo
Energisa esse troféu. A hora que anunciaram o nome da empresa, o coração bateu
mais forte. Esse prêmio é nosso!”, disse na época.
Matriz
energética de MS
Levantamento da
Superintendência de Energia do governo do estado feito a pedido do g1 aponta
que grande parte da matriz energética de Mato Grosso do Sul é de fontes
renovavéis, ou seja, de recursos capazes de se recomporem em determinado
período de tempo.
Segundo esses dados, excluindo
as potências das usinas hidrelétricas de Ilha Solteira, Jupiá e Porto Primavera
(todas de fontes renováveis também e que juntas tem capacidade de gerar 6.541
MW), o estado tem uma potencia instalada para produzir 3.170 MW de energia,
sendo 79,1% de fontes renovaveis.
Conforme as informações da
superintendência, a biomassa é responsável por 52,07% da potencia instalada de
produção no estado. São 20 usinas sucroenergéticas que utilizam o bagaço de
cana-de-açúcar para cogerar 1.155 MW (36,43% do total do estado) e 2 que usam a
lixivia, para produzir 496 MW (15,64%).
As hidréletricas, exceto as
três grandes - Ilha Solteira, Jupiá e Porto Primavera, e considerando as
pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) e centrais geradoras hidrálicas (CGHs),
totalizam 42 unidades no estado e condições de geração de até 541 MW (17,06%).
A fonte solar fotovoltaica,
responde, conforme a Superintedência de Energia, pela potencia instalada de 315
MW (9,97% do total do estado), com 31.176 unidades entre as ligadas a Energisa
e a Elektro.
No entanto, a Associação
Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar) aponta que a capacidade de
produção em Mato Grosso do Sul é ainda maior, chegando a 358 MW.
A única fonte não renovável que
aparece com destaque no ranking da matriz energética sul-mato-grossense é o gás
natural, com 5 usinas e capacidade de produção de 640 MW (20,18%).
A Superintendência destacou
ainda que com uma demanda de 1.500 MW, o estado utiliza somente 47% de toda a
sua potencia instalada na geração de eletricidade, considerando todas as
fontes.
A
força do sol no Brasil
Segundo
a Absolar, em junho o Brasil atingiu a marca histórica de 11 gigawatts (GW) de
potência instalada em telhados, fachadas e pequenos terrenos de residências,
comércios, indústrias, produtores rurais e prédios públicos. Isso equivale a
78,6% da capacidade da usina hidrelétrica de Itaipu. Veja acima
números da energia solar no país:
De acordo com a entidade, o
país possui mais de 1 milhão de sistemas solares fotovoltaicos conectados à
rede. A cadeia do setor, contabilizando dados desde 2012, movimentou mais de R$
85,4 bilhões em novos investimentos, que geraram mais de 475 mil empregos (no
acumulado) e uma arrecadação aos cofres públicos de R$ 22,7 bilhões.
A Absolar aponta que embora
tenha avançado nos últimos anos, o Brasil – detentor de um dos melhores
recursos solares do planeta – continua atrasado no uso da geração própria de
energia solar. Tanto que dos mais de 89,6 milhões de consumidores de energia
elétrica do País, apenas 1,4% já faz uso do sol para produzir eletricidade.
De acordo com a instituição, a
tecnologia solar fotovoltaica já está presente em 5.489 municípios e em todos
os estados. São líderes em potência instalada: Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande
do Sul, Mato Grosso e Paraná. Mato Grosso do Sul ocupa a 11ª posição no ranking
nacional de geração.
“A energia solar terá função
cada vez mais estratégica para o atingimento das metas de desenvolvimento
econômico e ambiental do País, sobretudo neste momento, para ajudar na
recuperação da economia, já que se trata da fonte renovável que mais gera
empregos no mundo”, aponta o CEO da Absolar, Rodrigo Sauaia.
Por , g1 MS
